Reduzir leitos psiquiátricos, mas com reposição de vagas.
Por falta de atendimento, a Lei da Reforma Psiquiátrica ainda não alcançou tratamento digno
Todos somos cidadãos e temos direito à dignidade, inclusive quem ultrapassa a linha da sanidade. Em defesa dessa afirmação, os tradicionais manicômios, que serviam para abrigar pessoas que passam por sofrimento psíquico utilizando o isolamento social e uma forma desumana de tratamento, hoje, não são mais considerados o modelo ideal de atenção.
Com a reforma psiquiátrica, alicerçada pela Lei 10.216/2001, leitos em hospitais psiquiátricos estão sendo extintos para dar lugar a tratamentos em locais como os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), Centros de Convivência e Residências Terapêuticas.
A lei entende que as internações prolongadas não levam o paciente à cura, não lhe possibilitam uma vida digna. Pelo contrário, segregam. O modelo ideal, segundo o professor de Psiquiatria do Universidade Federal do Ceará (UFC), Antônio Mourão, é o que articula toda a rede de saúde mental.
Distorcida.
Contudo, a reforma costuma ser interpretada de maneira distorcida, quando restringe a assistência em regime de internação ao portador de transtorno mental, quando indicada. Além disso, nem sempre as unidades alternativas de tratamento atendem à demanda ou possuem estrutura adequada.
De acordo com o diretor-geral do Hospital de Saúde Mental de Messejana (HSMM), Marcelo Theophilo Lima, há casos que podem ser resolvidos na atenção primária, outros na rede secundária, mas também existem pessoas que necessitam de internação em hospital e que vão ficar sem atendimento com a redução das vagas.
"O que falta é vencer o preconceito presente nos hospitais clínicos que faz com que essas unidades não recebam pacientes com transtornos mentais", salienta Lima. Para o presidente da Sociedade Cearense de Psiquiatria (Socep), José Alves Gurgel, a solução não está em extinguir as unidades em hospitais psiquiátricos, mas melhorá-las. Gurgel é contra a redução desses leitos. "É preciso que haja a substituição das vagas nos hospitais gerais", acrescenta.
Isso porque as unidades para tratamento de transtornos mentais disponíveis no Ceará são insuficientes. Somente 93 Caps atendem em todo o Estado e apenas 14 em Fortaleza. "Um Caps é para uma demanda de 50 mil habitantes e não de 200 mil", ressalta o presidente.
No HSMM, único hospital público do Ceará que recebe pacientes com distúrbios mentais, são 160 leitos psiquiátricos masculinos e femininos e 20 para desintoxicação de álcool e drogas, número considerado pequeno para a demanda.
"Fora isso, o atendimento do PSF (Programa Saúde da Família) é precário. É preciso aumentar a quantidade de Caps para que os pacientes não entrem em crise e não precisem de internação", sugere José Alves Gurgel. A estrutura também não é satisfatória. Normalmente, faltam medicamentos nos centros, como informa o diretor-geral do HSMM. "Assim, os pacientes são despachados para o hospital para receber os remédios".
Além disso, a Rede de Atenção em Saúde Mental do Município de Fortaleza tem funcionamento desarticulado, como informa o diretor, impedindo que o tratamento dos pacientes tenha continuidade e eficácia. "Isso é causa de repetidas internações com elevados custos sociais para pacientes e familiares, e financeiros para o Sistema Único de Saúde (SUS)", lembra.
De acordo com a integrante do Colegiado de Saúde Mental do Município, Rane Félix, a partir de 2001, ano de sanção da Lei da Reforma Psiquiátrica, a Saúde Mental de Fortaleza tem passado por mudanças estruturais. Mas foi em 2005 que o Município ampliou a cobertura de atendimento. "Hoje, temos 14 Caps, entre eles, os do tipo II, álcool e drogas e infantis. Há, ainda, 32 leitos em uma unidade de saúde mental em hospital geral". Atualmente, a gestão municipal prepara a ampliação da Rede de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas, pela implantação de dois Caps AD (Álcool e Drogas), com funcionamento 24h, segundo Rane Félix. "Mas também se estuda a ampliação do horário de atendimento nos Caps gerais. A meta é transformar um Caps AD e um geral em tipo III", informa.
Leitos
Além disso, a coordenadora acrescenta que leitos para atendimentos em saúde mental serão criados nos oito hospitais distritais. Ainda serão implementadas vagas para usuários de drogas e álcool por meio do Serviço Hospitalar de Referência em Álcool e Outras Drogas, na Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza, destinadas para tratamento da intoxicação, abstinência e complicações.
CAPS - 14
É o número de Centros de Atendimento Psicossocial presentes em Fortaleza. Desses, seis são gerais, seis AD e dois infantis, distribuídos entre as seis Regionais da Cidade. 93. Caps estão presentes nos municípios do Estado do Ceará, dos quais 40 são do tipo I, 27 do tipo II, três do tipo III, seis infantis e 17 Álcool e Drogas. Em todo o Brasil, são 1.502 centros
OPINIÃO DO ESPECIALISTA
Modelo atual é ideal se tiver mais estrutura
Antônio Mourão*
Professor de Psiquiatria da UFC
A luta antimanicomial fez com que os hospitais psiquiátricos deixassem de funcionar como verdadeiros depósitos humanos. O propósito da reforma é que a saúde mental deixe de ser hospitalocêntrica para se tornar uma rede composta por uma série de estruturas fundamentais para o tratamento das pessoas com transtornos mentais. Primeiro, os postos detectam possíveis problemas. Em seguida, as pessoas são encaminhadas para os Caps a fim de serem acompanhadas por psiquiatras. Lá, têm atividades em grupo e recebem assistência. Os mais graves precisam ser internados.
O modelo que vem sendo pregado pela reforma psiquiátrica é o ideal, se for acompanhado de uma estrutura adequada. É preciso, por exemplo, que cada hospital geral tenha uma unidade especializada no tratamento de doentes mentais. Crianças com problemas de drogas não devem ser atendidas junto com os jovens ou com outras crianças com problemas mentais.
O problema é que a Rede de Saúde Mental do Município não conta com recursos financeiros nem humanos. Os Caps, por exemplo, não têm psiquiatras. Os profissionais que atendem nas unidades são terceirizados, sem vínculo com a Prefeitura de Fortaleza. Isso facilita o tráfico de influência politiqueira. No Interior do Estado, é ainda pior. Lá, são as enfermeiras que passam os remédios para os pacientes.
Quanto à estrutura física, os prédios dos Caps são alugados, muitos têm estrutura antiga que foi adaptada, apresentando problemas de eletricidade e segurança. Mesmo com precariedade, os centros funcionam, mas a demanda tem aumentado.
SAÚDE MENTAL
Conferência vai discutir oportunidades de melhoria
Na semana em que se comemorou o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, a discussão sobre a efetiva implementação da Lei da Reforma Psiquiátrica vem à tona. No Brasil, quase 60 mil pessoas ainda continuam presas em hospícios.
Na tentativa de discutir a saúde mental no País, será realizada, em julho próximo, a Conferência Nacional de Saúde Mental. O Ceará, que conta com a lei estadual Mário Mamede pela extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos e substituição por uma rede extra-hospitalar de atendimento, ainda precisa avançar muito a fim de melhorar a rede de saúde mental.
Para tanto, propostas serão levadas à conferência, como a ampliação do funcionamento dos Caps; a criação de leitos de desintoxicação e psiquiátricos em hospitais gerais; a transformação dos Caps II em III, com a presença obrigatória do psiquiatra; o aumento da sociabilidade como forma de tratamento nas unidades; e a contratação de profissionais concursados a fim de evitar a rotatividade.
"É preciso que os locais de atenção à saúde mental passem a contar com assessoria jurídica e departamentos de direitos sociais e previdenciário a fim de garantir os benefícios das pessoas com transtornos mentais", acrescenta a coordenadora do Fórum Cearense da Luta Antimanicomial, Núbia Caetano.
A Sociedade Cearense de Psiquiatria (Socep) defende, com ênfase, a criação de ambulatório especializado de Psiquiatria também em Serviços de Assistência Médica Especializada, como as policlínicas e os centros de especialidades médicas, com o objetivo de prestar assistência aos portadores de transtornos mentais não-psicóticos.
Fora isso, implantação de ambulatório especializado em dependentes químicos nos hospitais gerais é outra proposta. "Que se criem leitos para pacientes com transtornos mentais em hospitais infantis, equipes similares às dos Caps para a população prisional e, ainda, que se melhore a situação dos manicômios judiciários", diz o presidente da Socep, José Alves Gurgel.
Boa parte dos pacientes com problemas psíquicos acabam sendo encaminhados para o Hospital de Saúde Mental de Messejana, até mesmo os que não precisam de internação. Mas a estrutura da unidade já não comporta tanta gente. Muitos são obrigados a esperar por uma vaga.
Dependente químico
O serralheiro Francisco Coelho da Costa, dependente químico, já ficou internado por 15 dias na Unidade de Desintoxicação do HSMM e recebeu alta. Porém, como conta, teve recaída e precisou ser internado novamente. "Quero ficar no Hospital de Messejana porque, nos outros, a droga entra. Já estive no São Vicente de Paulo e fui maltratado lá. Também já procurei os serviços do Caps, mas eles me mandaram para cá", explica.
De acordo com Francisco, que é de Crateús, ele já vendeu tudo para pagar dívidas de drogas e a sua mulher o abandonou. "Quero ficar bom", diz.
A estudante Raquel de Araújo diz gostar de ficar no HSMM. Ela, que sofre de transtorno bipolar afetivo, já frequentou o Caps de Messejana, mas a necessidade era de internação. "Agora já estou boa. Vou sair na próxima semana e fazer até faculdade", comemora.
FIQUE POR DENTRO
Legislação
A Lei 10.216, da Reforma Psiquiátrica, sancionada em 6 de abril de 2001, dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Os direitos são assegurados sem qualquer forma de discriminação. São eles: ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, ser tratado com humanidade e respeito, ser protegido contra abuso e exploração, ter sigilo e direito à presença médica. A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. O tratamento visará à reinserção social do paciente em seu meio. É vedada a internação de pessoas portadoras de transtornos mentais em instituições com características asilares.
LINA MOSCOSO
REPÓRTER